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América, Movementos sociais, Opinião, Politica internacional — 3 Outubro, 2022 at 7:37 a.m.

Lula deverá combinar mais do que nunca ação institucional e mobilização social contra a resiliência do bolsonarismo

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Lula vence, mas fica aquém e haverá segundo turno no Brasil. Resiliência de Bolsonaro ofusca vitória de Lula no primeiro turno. Nada está decidido no Brasil. Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), venceu o primeiro turno das eleições presidenciais com 48,42% dos votos válidos, mas o renascimento, que nenhuma pesquisa poderia prever, do candidato à reeleição Jair Bolsonaro, do o Partido Liberal (PL), com 43,20% dos apoios, reforça a incerteza para o segundo turno, em 30 de outubro. O Bolsonaro parou o golpe e continua sendo uma opção válida para mais de 51 milhões de eleitores, apesar da gestão negacionista do Executivo durante a pandemia, que resultou em centenas de milhares de mortes. O sucesso da extrema direita nas eleições para o Congresso, o Senado e na escolha do governador é inquestionável: com maioria absoluta no Rio de Janeiro e vitória no primeiro turno em São Paulo, com Tarciso de Freitas, ex-ministro amigo de Bolsonaro que nunca morou no estado. O que há quatro anos era uma onda anti-establishment transformou-se  num movimento de extrema-direita absolutamente estruturado, forte e enraizado, com uma agenda temível para as minorias. A sua normalização torna-a uma opção viável para os eleitores do espaço liberal e conservador, sem afetá-los em nada as derivas e ameaças de golpes e populismos de extrema direita. Apesar dos 6 milhões de votos de vantagem do PT, a extrema direita -como aconteceu com Donald Trump nos Estados Unidos-  vai resistir e vai continuar apostando na polarização, criminalizando o adversário político e aprofundando ainda mais a divisão instalada na sociedade brasileira. Em clima de polarização, o apelo ao voto útil dos correligionários de Lula para selar a vitória definitiva no primeiro turno provocou uma reação inesperada. Os eleitores que pensaram em apoiar Bolsonaro no segundo turno abandonaram a terceira via para se concentrar no atual presidente. Velaqui algumas chaves que podem ajudar ao leitor a interpretar a situação:

Desenvolvimentismo sem confrontar o capital. Como explica André Singer em  “Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador (Companhia das Letras, 2012)”, após as eleições presidenciais de 1989, Lula diz algo como “fomos derrotados pola periferia, não pelos ricos”, na região sudeste, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.Não houve comoção social como se esperava e foi prenunciada por setores conservadores que diziam que o governo Lula seria um governo tumultuado. Os mais pobres passaram a votar em massa em Lula, principalmente no Nordeste (e continuam votando até hoje). Por sua vez, a classe média se voltou para o Partido da Social Democracia Brasileira (PSBD). É verdade que esta sempre esteve relacionada à classe média, mas a classe média estava dividida.  Acontece que as periferias das grandes cidades são formadas em certa medida por pessoas que vêm da região nordeste. Para entender, portanto, a questão do norte, é fundamental a distinção que faço entre os pobres e as classes trabalhadoras. Os pobres fazem parte da classe trabalhadora, mas são uma fração —que chamei de subproletariado— desta última. Quando comecei a trabalhar a questão eleitoral, o que levantei foi que esse setor é vulnerável e carece do que poderíamos chamar de “cidadania trabalhista”. Essa fração da classe trabalhadora carece de direitos (estamos falando de cerca de metade da força de trabalho que nunca conseguiu se integrar totalmente ao mercado de trabalho). O lulismo conseguiu começar a integrar parte desse contingente, que nos últimos anos voltou a crescer. Procurei caracterizar esse setor como um setor vulnerável e sugerir que essa vulnerabilidade o impede de participar da «luta de classes», como disse Paul Singer. Não é que você não possa fazer nada; mas, em condições normais, sua participação é difícil. Assim, me ocorreu pensar que essa condição é parte da explicação de por que uma parte da classe trabalhadora tende a não apoiar posições vinculadas aos sindicatos, por exemplo, tendendo a opções políticas que garantam a ordem. Isso é o que muda com a reeleição de Lula em 2006.A partir de 2004, explica Singer,  já é perceptível a redução da pobreza, alcançada por meio do Programa Bolsa Família e do crédito consignado; em 2005, somou-se a essas duas iniciativas o aumento do salário mínimo. Esse programa prático teve mOito sucesso, pois produziu um aumento no nível de consumo de parte da população que ganhava moito pouco, sustentando a situação econômica desse segmento em situação de baixo crescimento. Do meu ponto de vista, isso representou uma invenção. Foi algo que não foi planejado. Sem confrontar o capital: não foi feito em detrimento de certas diretrizes centrais do neoliberalismo (juros altos, baixos níveis de investimento público e estrutura cambial flutuante), e foi isso que permitiu que os dous governos de Lula se movessem dentro de um certa estabilidade, que é o que garantiu a estabilidade política – manter um baixo nível de conflito, mesmo no segundo mandato de Lula, o mais desenvolvimentista, a partir de uma avaliação da correlação de forças em cada momento. Em 2007, uma enorme quantidade de investimento é retirada do sistema nacional de saúde. E por que o Congresso fez isso? Porque tem uma maioria conservadora. Poderia ter havido um processo social fora do Congresso, mas não havia. Algo que talvez o PT devesse pensar se chegar ao poder no segundo turno:  combinar ação institucional e mobilização social,

O governo de  Dilma Roussef reduziu drasticamente a taxa de juros no início de 2012. A esquerda brasileira como um todo  identificou o problema da taxa de juros como fundamental para a questão da distribuição de renda. Estamos falando em mudar o perfil de distribuição de renda em um dos países mais desiguais do mundo.Os bancos privados não gostaram da queda das taxas de juros. Com isso, desencadeou-se o que Singer chama de “guerra do spread”: o Estado baixa sua taxa, mas os bancos privados continuam praticando a sua. Dilma usou os bancos públicos para fazer com que os bancos privados reduzissem suas taxas de juros, argumentando que se os bancos privados não fizessem o mesmo, perderiam clientes. Os bancos privados foram forçados a reduzi-lo. Isso significa lutar com o cerne do capitalismo, que é o financeiro.A outra medida de Dilma consistia em tratar da questão cambial, que basicamente significava administrar as importações e facilitar as exportações, favorecendo as indústrias brasileiras. Houve uma desvalorização cambial em torno de 20%. Aqui há um debate entre os economistas: há quem diga que essa magnitude de desvalorização não foi suficiente, que com essa desvalorização não foi garantida a competitividade da indústria nacional. Seja como for,  Dilma foi a única que fez isso. O que de fato aconteceu foi que enquanto Dilma tomava essas decisões em questões econômicas, os industriais, paradoxalmente, começaram a mudar de posição em relação ao seu governo. Ela fez de tudo para favorecê-los, mas eles se opuseram a ela por motivos que não são fáceis de entender, destaca André Singer. Houve também uma mudança na regulamentação que reduziu as tarifas elétricas, inclusive as domésticas, em setembro de 2012. Além disso, a ex-presidente Dilma Rousseff implementou uma política sistemática de combate ao que no Brasil chamam de fisiologismo, ou seja, a ocupação de espaços no Estado para ganho pessoal (nepotismo, amiguismo e favoritismo). Dilma tomou decisões  claras e distintas no sentido de combater o fisiologismo, que lhe custou a maioria no Congresso (principalmente na Câmara dos Deputados) e polo qual pagou um alto custo porque não o fez de forma mobilizadora, contando com as bases sociais necessárias.

 

O impeachment:um golpe parlamentar. A Operação Lava-Jato,  produziu descobertas incríveis e acabou sendo, em suma, uma manobra faccional cujo objetivo claro era destruir o PT e o ex-presidente Lula. A Operação Lava-Jato faz suas descobertas sobre a Petrobras. Quando isso aconteceu, fazia mais de um ano que Dilma tinha deixado de lado toda a gestão da empresa, sem que sua ação tivesse relação direta com a Lava-Jato. O juiz Moro demonstrou sua imparcialidade ao aceitar se juntar ao governo Bolsonaro, que foi o principal beneficiário de suas ações. Quando isso aconteceu, sua aura escureceu e a tese da natureza facciosa da operação foi demonstrada. Vai ser um golpe parlamentar típico dos processos de erosão da democracia que estão ocorrendo em todo o mundo. Um processo que ocorre dentro das leis, não rompe com as constituições, mas usa-as. O impeachment está previsto na constituição brasileira, mas a própria constituição prevê que esse instrumento só pode ser acionado quando houver crime de responsabilidade. E ficou claro que a presidente Dilma Rousseff não cometeu crime de responsabilidade, tratando assim de um golpe parlamentar que abriu as portas para o desmonte da democracia brasileira, dando lugar ao governo Temer, com retrocessos sociais e econômicos importantes que Bolsonaro continua.

Em 2018 houve eleições que impediram Lula de participar da disputa, e isso foi resultado de uma ação deliberada da Operação Lava-Jato para impedir o seu retorno ao governo. Mesmo assim, o PT decidiu reconhecer os resultados.As eleições geram uma reativação da base de direita que é moi forte no eleitorado brasileiro, embora não seja a maioria. A direita tem uma base eleitoral próxima de 30%, o que equivale ao peso que o lullismo tem em condições normais, ou seja, em momentos anteriores ao início das campanhas. Uma reativação que funciona quando Bolsonaro adota uma retórica anticomunista que a princípio pode soar extemporânea para alguns, já que a opção da esquerda mainstream, o lullismo, não é comunista. Um conservadorismo de base popular formado por setores da classe média baixa aos quais se somam frações das massas trabalhadoras. São setores que não têm moitos recursos, mas que, pola existência de um grande subproletariado, funcionam como classes médias receptivas à retórica do  medo de perder o que têm. Os setores vulneráveis  ​que não têm quase nada também temem a desordem, pois são o elo mais fraco.Querem uma mudança, mas polo medo com que se alimentam, pedem que qualquer transformação seja feita dentro da ordem. Conforme defendido por Singer, o lulismo desmantelou esse conservadorismo popular entre 2006 e 2014, mas o preço a pagar foi a desmobilização. Talvez hoje mais do que nunca, não convém subestimar a capacidade da base social do bolsonarismo de acreditar em qualquer preconceito sobre o “comunismo” das elites brasileiras e das autoridades eleitorais para mover-se nas ruas. Vale lembrar que Bolsonaro aprovou o decreto que legaliza o uso de armas de fogo no Brasil. Um milhão de armas foram legalizadas e cada cidadão pode ter até sete armas em casa.

Parecia uma grande manifestação de esquerda, mas não era. O que aconteceu em 2013 foi uma espécie de transformismo mas das ruas. Começou como um protesto de esquerda de jovens, com uma visão  mais radical que o lulismo. Aquelas pessoas, que não tinham nada a ver com o subproletariado, entenderam que a situação era melhor, mas que tinham que avançar, dar um passo à frente. O que acontece é que eles acordaram um monstro que não podiam controlar. Em questão de dias, as manifestações mudaram completamente de rumo, houve uma sequência de manifestações de esquerda pela redução do preço das passagens de transporte, principalmente em São Paulo. Essas manifestações terminaram em uma grande repressão no dia 13, que até  foi criticada até polos jornais mais conservadores, porque a polícia estava realmente fora de control. Em reação a essa repressão, desencadeou-se uma manifestação que foi aproveitada pola classe média conservadora, que usou o argumento antirrepressivo para iniciar um movimento de massas contra o lulismo, que na cidade de São Paulo foi representado polo prefeito Fernando Haddad , e contra o governo federal liderado por Dilma Rousseff.

Numa terceira manifestação, a esquerda foi expulsa das ruas. Grupos vestidos com camisetas da seleção brasileira de futebol começaram a aparecer. Não se sabia exatamente de onde vinham, mas hoje vemos que esse foi o germe do bolsonarismo. E tem a ver com o fenômeno das redes sociais com raizes no subsolo. Foi um “transformismo espontâneo”, afirma Singer. Moitas pessoas da esquerda participaram das conferências, que se espalharam polo país, e não as critico, porque não foi fácil entender o que estava acontecendo. Às vezes, a extrema esquerda e a extrema direita protestavam na mesma avenida. Em São Paulo houve até conflitos entre essas forças, mas não em outros lugares.A direita mudara de posição e partiu para a ofensiva contra o governo, o que impactará no golpe parlamentar de 2016.

O gabinete do ódio: especialistas em ‘fake news’

O sucesso da extrema direita nas eleições para o Congresso, o Senado e na escolha do governador é inquestionável: com maioria absoluta no Rio de Janeiro e vitória no primeiro turno em São Paulo, com Tarciso de Freitas, ex-ministro amigo de Bolsonaro que nunca morou no estado.As eleições municipais de 2020 serviram de banco de testes. O caso que mais chama a atenção é o da candidata de esquerda em Porto Alegre, Manuela D’Ávila, que, após sofrer bombardeios incessantes, perdeu o segundo turno e agora pensa até no exílio por causa das constantes ameaças que ainda recebe. Antecipando o segundo turno, no dia 30, as fake news terão um papel ainda mais preponderante.

Bolsonaro parou o golpe e reviveu com base em uma estratégia perfeitamente desenhada. Em primeiro lugar, o uso da máquina pública acabou dando os resultados eleitorais no momento certo, com o aumento temporário da transferência de renda do programa Auxílio Brasil, que substitui o Bolsa Família Lulista, ou a queda temporária do imposto sobre combustíveis . Essas medidas coagularam a hemorragia da perda de votos dos mais desfavorecidos.

O bolsonarismo tem apostado na desconstrução da figura de Lula alimentando o sentimento anti-PT enraizado entre os eleitores de centro e de direita desde o governo de Dilma Rousseff. Por isso, entrou em cena o gabinete do ódio, que é a fábrica de notícias falsas que se instalou dentro do palácio presidencial, e que tem trabalhado em toda a sua capacidade para criar e distribuir conteúdos concentrando-se nos dias que antecedem as eleições. Os resultados obtidos têm sido evidentes demais em São Paulo, principal colégio eleitoral do país, onde Bolsonaro tem prevalecido com 7 pontos de vantagem sobre o ex-sindicalista.

A avaliação da correlação de forças a cada momento gera estranhos companheiros de viagem. Até Washington virou lulista, dez anos depois de tramar a operação lawfare contra o ex-presidente. O establishment brasileiro e alguns dos empresários da grande oligarquia brasileira que apoiarom o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff e a prisão de Lula, abrindo caminho para a vitória de Bolsonaro, tornaram-se lulistas. Cardoso, outro defensor do golpe parlamentar contra Dilma em 2016, pediu um voto útil para Lula. Entre os convertidos ao lulismo estão Miguel Reale Junior, advogado e autor do impeachment de Dilma Rousseff, destituído da presidência há exatamente seis anos por um crime tributário que –já é reconhecido– ela não cometeu. Também Abílio Dino (Carrefour) ou Isaac Sidney do Banco Bradesco que na altura aplaudiram o projeto de Bolsonaro e de seu ministro da Fazenda, o multimilionário gestor de fundos Paulo Guedes, de privatização e desregulamentação da economia brasileira: da previdência à Petrobras O outro autor jurídico do impeachment, Antonio Carlos Cista D’Ávila, é um bolsonarista convicto, o que é uma trajetória, pelo menos, mais coerente que a de Reale Junior). Lula já escolheu como candidato a vice-presidente o conservador Geraldo Alckmin, que há alguns anos participou da campanha para criminalizar o PT. Na semana passada, ele deu a entender que pode nomear o veterano ex-presidente do Banco Central e economista conservador Henrique Meirelles para chefiar o Ministério da Fazenda. E entre eles, talvez o mais surpreendente convertido, Josué Gomes, presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), a associação empresarial que instalou um pato inflável na frente de suas portas – figura que apareceu em todos os protestos pelo impeachment – ​​juntos com faixas de Lula com uniforme de presidiário e Dilma com a frase “Tchau Querida” que, ao contrário de outros novos aliados, sempre descreveu a demissão de Dilma como um golpe.

Quando Lula e Dilma se dispuseram a fazer mudanças nas condições de vida de milhares de pessoas (mesmo que algumas tenham sido implementadas), suportaram forte pressão das instituições financeiras que os impediram (judicialização e impeachment são seus instrumentos). As possibilidades de decisão são moito limitadas. Essa situação, mesmo vencendo no segundo turno, não mudou, mas piorou sob o bolsonarismo e a ofensiva neoliberal global.

 

 

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