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Economía, Imprensa, Opinião, Televisão — 25 Maio, 2023 at 11:34 a.m.

Succession | Uma visão satírica do capitalismo antropológico sob o neoliberalismo

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 Tom Wambsgans prevalece enquanto o incomum Matsson escolheo em vez Siv para administrar a nova empresa resultante da fusão.
Tom Wambsgans prevalece enquanto o incomum Matsson escolheo em vez Siv para administrar a nova empresa resultante da fusão.

Succession (HBO) é uma visão satírica da família Roy, acionistas  maioritários da Waystar Royco, enquanto disputam o futuro da sua empresa movidos pelo interesse próprio, um equivalente à Fox News possuindo estúdios de cinema, parques temáticos, apostas, cruzeiros e uma controversa rede de televisão de produção de fakes chamada ATN. Um mundo de homens sádicos e dos pequenos motivos e as erráticas causas, as maldades e sofrimentos mesquinhos que, de súpeto, mostram-nos que os moi ricos, o 1% do mundo, também choram. Nada para amar ou sofrer sublimemente no altar olímpico, mas as mesmas mediocridades triviais que nos esperam no final do percurso da prosperidade bem sucedida. Também ajuda a trilha sonora especialmente misteriosa, criminosamente sedutora, de Nicholas Britell  que sublinha uma cinematografia rica em luscos fuscos 

Explorando a capa temporal do tempo finito ou mesmo cínico e inmoral do capitalismo, agora en forma de terrorismo familiar, submetido a constante nascimento e reprodução (sucessão). É pertinente pensar que, tal como o capitalismo é um organismo imortal, viral, colonizador, que funciona de acordo com contradições internas – quando há falências como a de 2008 – mas continua a agir como se o dinheiro virtual e a dívida tivessem valor, também o é este loop familiar de magnatas privilegiados, apresentado na série da HBO como processo de simulação do existente (relações familiares tóxicas) que na realidade é um processo de construção duma realidade paralela em que há, obviamente, o capital e a extracção desenfreada de rendimentos de tudo o que existe, incluindo o mercado do relacional, do emocional e do familiar como valor de troca ou produto de consumo. No final, estamos todos fragmentados, quebrados e feridos.Psiques particulares definidas por Freud como fictícias, mas que cumprem no mercado real das emoções e das relações sociais as funções de valor de troca

O que motiva o clã bilionário em suas batalhas autodestrutivas?

O diretor executivo da Waystar e patriarca da família Roy, Logan Roy, tenciona passar como monarca absoluto do cargo ao seu segundo filho mais velho, Kendall. Depois de matar acidentalmente um camareiro num acidente de carro, perde ainda mais autonomia à medida que Logan assume mais control de seu dia-a-dia. Depois duma fuga à meia-noite que leva Logan a mejar no tapete,  decide imediatamente renegar a sua oferta a Kendall e ficar por “mais alguns anos”. Isto abre a oportunidade para várias outras personagens assumirem potencialmente o controlo da Waystar e a maioria desses candidatos são os seus filhos, indivíduos extremamente privilegiados que terão de enfrentar que o que está em jogo não é apenas financeiro, mas também as relações pais-filhos e irmãos no jogo brutal do reconhecimento. Queremos ser vistos como dignos aos olhos daqueles que consideramos dignos de nos julgar segundo o definido por Lacan: o desejo de ser reconhecido polo Outro  e nos esforçamos  por colma este desejo adquirindo aquilo que pensamos que o Outro deseja. Este desejo lacaniano de reconhecimento amíudo se  manifesta em Sucessão como uma fixação paternal e misógina que deixou claro desde o início que Siobhan Roy nunca poderia suceder na herança. Matsson diz a Tom durante o jantar: “Ela é esperta, mas eu tenho muitas ideias, não preciso de mais ideias”.Tom consegue o posto porque a sua esposa é muito “esperta” e “agressiva” e com ideias

A primeira temporada estabelece a decisão de Logan de manter o seu poder e apresenta o plano de Kendall para trair o pai através dum golpe de estado na sala de reuniões, argumentando que o recente acidente vascular cerebral do pai e a perigosa adquisição de dêvedas o tornaram inapto para liderar a empresa. Depois de o seu plano falhar inevitavelmente, Kendall numa recaída e planeja a adquisição hostil da Waystar Royco com o rival de Logan, Sandy Furness e o seu amigo de faculdade Stewy Hosseini. A adquisição coincide com o casamento de Shiv e Tom, onde Kendall entra em conflito com o pai e acaba por procurar cocaína com um empregado de mesa na recepção. Kendall e o empregado vão de carro ao encontro dum traficante de cocaína, mas acabam por conduzir o carro para um lago próximo. Kendall consegue escapar, mas o empregado morre no acidente. Na manhã seguinte, é abordado polo pai, que sabe do acidente e o encobre. Abraçam-se e o pai chama-lhe o seu “rapaz número um”. Na segunda temporada, Kendall muda de lado na adquisição hostil e ajuda o pai a loitar contra Sandy e Stewy.

Logan decide que devem duplicar as adquisições e procura comprar a PGM, um equivalente da CNN. Durante esta temporada, Logan fai as beiras a vários candidatos a diretor executivo, incluindo a sua filha Shiv e a Rhea, a directora executiva da PGM . Nenhuma delas acaba por ficar com o cargo e um escândalo de abuso sexual começa a crescer. O escândalo torna-se tão grande que um dos membros da família tem de assumir a responsabilidade. Logan decide que deve assumir a culpa e Kendall concorda. Na conferência de imprensa preparada para Kendall assumir a culpa polo escândalo, Kendall surpreendentemente traiçoa o pai, culpando-o pola cultura tóxica da Waystar. Logan, assistindo na televisão, acena para si mesmo, satisfeito com a capacidade de seu filho  finalmente agir e incorporar um jeito  ‘matador’. A figura do patriarca retém e concede o seu reconhecimento com uma força tal que torna o seu julgamento central para a cimentação da sua posição de poder. Em Succession, o Outro, o juiz que enfrentamos para nos conceder reconhecimento, é encarnado através da figura do Rei Logan que guarda a chave do seu castelo.

Quando Kendall é convidado polo pai a assumir a responsabilidade polo encobrimento do escândalo de abuso sexual na divisão de cruzeiros,  “assassino” é o termo que  Logan utiliza para descrever as características necessárias para assumir o papel de director executivo da Waystar. Depois de concordar, Kendall pergunta a Logan porque é que ele pode ser diretor executivo, ao que Logan responde: “Tu não és um assassino. Tens de ser um assassino”. Nada de novo nas narrativas financeiras, Lembre-se a ideia de “homens que se portam mal” do filme Wall Street de Oliver Stone. Outro exemplo  que realça o fracasso de Kendall neste aspecto é dado logo no início do episódio piloto, quando Kendall trabalha para fechar a compra da “Vaulter”. Quando lhe perguntam que vai fazer para rematar a transacção, diz em tom de mofa: “Vou fazer-lhes uma mamada”, um comentário que Logan ouve. A falta de defesa da heteronormatividade e a ideia de agir ao serviço dos outros para ter sucesso nos negócios é um ponto de inflexão sem retorno para Logan. De certa forma, para Logan, Kendall não tem as qualidades masculinas necessárias para gerir a sua empresa e aborda a sua liderança com a mesma visão, de garantir que a empresa do seu pai se oriente para os meios de comunicação online como forma de consumir dos mercados do futuro. Este pulo é reiterado na segunda temporada, quando Logan fai que Kendall estrague a Vaulter e elimine os sectores lucrativos da empresa, refutando essencialmente esse vieiro. No final da temporada, Kendall essencialmente perdeu toda a sua capacidade de agir por conta própria. Essa posição leva à “traição” final de Kendall e à sua metamorfose num homicida.  Os elementos dramáticos e cómicos do programa contribuem a  que  nós como espectadores  podemos antecipar como todos os seus respectivos impulsos devem permanecer insatisfeitos, não importa quanta riqueza acumulem, não importa quanto amor ganhem, desde que venha das fontes erradas, desde que não se sintam reconhecidos.

 

 

Por que um programa sobre personagens aparentemente tão distantes de nossa experiência cotidiana comove tanto?

O desejo de reconhecimento e como esse desejo é moldado polas ideologias manifestadas em nosso presente. A feudalização do mundo atual manifesta-se também quando a única possibilidade de entrar no jogo do capital financeiro, social e cultural é ser herdeiro duma família que se estrutura como um negócio e os negócios se alicerçam como família. Ao mesmo tempo que são uma ilha para si próprios, mas sempre intimamente ligados à implacável política de poder em torno da questão de saber quem sucederá a Logan Roy como director executivo, nós identificamos com as personagens porque podemos imaginar vividamente como qualquer um de nós se tornaria perverso vivendo uma vida de constante manipulação e luta rival.  Quando a única coisa que conta é se se cumprem as regras do jogo, são ricos como um exemplo que vale a pena seguir?. Mesmo quando a  normatividade que a familia impôs nos recantos mais íntimos da existência foi substituída por aquela, mais difusa claro, produzida pola competição económica. Por isso, também deploramos cada um deles. É a lógica monárquica da herdança, real, simbólica e imaginária que como qualquer tipo de monarquia, a farsa está a tentar não ser desmantelada. Será Logan Roy tão vazio como os seus filhos? Veremos se haverá uma coroação neste abrente de domingo para segunda ou se o reino será incendiado por uma invasão de amotinados prontos a guilhotinar a família real e assaltar a Bastilha? Porque é que sentimos as aversões que sentimos? 

Num primeiro olhar, podemos certamente responder que os desprezamos devido às suas acções deploráveis. Na melhor das hipóteses moralmente ambíguas, na pior das hipóteses maléficas no seu comportamento, as personagens de Succession lembram-nos constantemente as moitas formas como alguém pode perder-se nas promessas corruptoras do poder e da riqueza. Porque é que lançam sempre para o poço, porque é que uma pessoa que aparentemente tem todo se autodestruiria conscientemente lutando por uma herança que nenhum deles, como fica implícito ao longo do espectáculo, está dotado para suportar.from

A etimológica de Roy é rei. Succession é não é apenas a história do rei Logan Roy em devalo. Um bom rei sabe que o reino ( o império de comunicações Waystar Roco) vem antes da sua vida. Logan é um mau rei porque tem sido um mau pai. Um rei extremamente poderoso, mas tirânico que manipula os seus filhos. Entendendo os seus filhos como ameaças à sua vida e juventude, como competição, ensina-os a ser exactamente isso e assim se cumpre a profecia da sua própria condição de malcriados narcisistas, o seu excesso no consumo de luxo e o seu desprezo por quem pode saber, a arrogância tosca e reforçada com as próprias crenças e convicções que os pobres celebramos nas redes sociais onde se monetizar opiniões.

Kendall, como arquétipo dum bom filho, sonha ser o seu pai. Roman só quer o amor de Logan. A sua arela de poder vem mais do desejo de provar que é digno desse amor do que do poder em si, do qual depressa se cansaria e abandonaria. No fundo, Shiv sabe que não está a jogar o mesmo jogo que os seus irmãos. Não é um homem, não pode ser um herdeiro legítimo, e esta regra extremamente implícita é compreendida por todos de forma dissimulada. Porém, Succession, implementa dispositivos narrativos que desafiam a masculinidade hegemônica, incluindo a abertura de Shiv na sua carreira e vida pessoal. Shiv trabalha para uma candidata democrata, apesar da sua família ser proprietária duma rede de direita. Além desta diferença de alinhamento político, Shiv nunca deixa transparecer as suas verdadeiras convicções.

Além disso, Shiv valoriza a sua independência acima de tudo, como podemos ver no seu percurso profissional e na sua relação com Tom. Velai quando Logan lhe oferece o cargo de Directora Executiva,  aceita, mas mais tarde aceita também o potencial cargo de Secretária de Estado do seu chefe e candidato democrata. Outra cena que retrata Shiv como uma personagem em crise é quando lhe é pedido que confronte a testemunha-chave do escândalo de encobrimento de agressões sexuais que atinge a empresa da sua família. Nesta cena, Rhea oferece-lhe a oportunidade de se afastar e manter a afouteza numa situação francamente perturbadora, mas Shiv decide confrontar a vítima  para proteger a empresa da família. O que se segue causa pasmo já que Shiv manipula uma vítima de agressão sexual para que não testemunhe, a fim de proteger a sua auto-imagem na imprensa. “Se ela falar e for convincente, então acaba-se a empresa da minha família. Por isso, sim, tenho de o fazer”, responde a Rhea. Esta troca de palavras  demonstra as formas mais envolventes como as mulheres são sujeitas ao neoliberalismo. A lente neoliberal sobreposta num certo pós-feminismo construído com os seus sujeitos ideais e dum sentido de individualismo que partilham a mesma raiz estrutural, entre o sujeito neoliberal auto-regulador e o sujeito pós-feminista auto-poíetico. A ligação entre os dous reafirma a influência neoliberal na cultura popular e evidencia a maior exigência que é feita às mulheres neste ambiente em que são  obrigadas a trabalhar e a transformar o seu eu, mesmo em ambientes privilegiados, a regular todos os aspectos da sua conduta e a apresentar as suas acções como livremente escolhidas. A reviravolta de Shiv no final, destruindo o seu irmão e elevando o seu marido submisso mas ganhador, confirma o que moitas pessoas pensaram o tempo todo: Shiv é o pior do pior dos Roys. Si obviamos que Roman age  para declarar um verdadeiro fascista o presidente dos Estados Unidos e kendall matou um camareiro no casamento de Shiv e Tom. Uma cena reveladora pela sua crueldade é quando Kendall, pouco antes da votação sobre a venda a GoJo, abraça um perturbado Roman com tanta afouteza e esfregando a sua cabeça no seu ombro, que ele reabre as feridas na cabeça que Roman sofreu na noite de sua surra. No final das contas, Ken não conseguiu suceder ao patriarca Logan, mas herdou sua propensão a servir o amor-sádico.

Por sua vez, a sexualidade do filho mai novo Roman é perturbada pola presença de mulheres. Aspecto que der ligeiramente aludido na primeria temporada vai aumentando na segunda quando Tabitha, a namorada de Roman,  desafia-o nesse sentido. Tabitha provoca frequentemente Roman, por vezes publicamente, dizendo que nunca tiveram relações sexuais. A resposta de Roman, em público, é que sim, mas, em privado, parece um pouco enojado com a perspectiva. Roman representa dalguma maneira a crise masculina de incapacidade de estar à altura da masculinidade heterossexual tradicional, bem como de incapacidade de participar nela em dissociação entre o que é dito e o que é real tal como mostrado em seu relacionamento com Gerri.

 

Isto é real? A impossibilidade ética do capitalismo

Slavoj Žižek lembra-nos que a percepção sobre o que temos de alcançar para adquirir reconhecimento é frequentemente de natureza ideológica: a ideologia é um conjunto de ideias que incutem uma falsa consciência sobre o verdadeiro aspecto da construção do mundo. É precisamente esta noção de um mundo livre de ideologias que naturaliza, e assim torna invisíveis, as ideologias moito vivas do nosso tempo. Por outras palavras, poderíamos dizer que afirmar que vivemos numa sociedade pós-ideológica é privar-nos das nossas ferramentas epistémicas para reconhecer os elementos ideológicos que nos afectam e é, portanto, ela própria, uma afirmação ideológica.

Com efeito, parte do subtexto centra no gênero para examinar a metamorfose da masculinidade na era neoliberal e no domínio da ficção financeira. Os seus arcos de personagem seguem a mesma trajetória, na qual disputam o lugar de CEO, ao mesmo tempo que lutam com a sua identidade familiar e de género.O conflito na direcção da masculinidade é o cerne do que torna Succession especialmente pungente e mordaz, não só em relação à masculinidade tóxica  do capitalismo financeiro mas também à toxicidade do ambiente que contém estas personagens. No penúltimo episódio da segunda temporada, Rhea descobre a culpa de Logan no escândalo de agressão sexual na Waystar Cruses. Numa troca de palavras acalorada com Logan, Rhea decide não aceitar o cargo de CEO. Ela diz a Logan: “Não sei se te preocupas com alguma coisa e isso assusta-me”. Logan responde: “Sabes que és fungível”- Eu não sou fungível, resposta Rhea, ao que Logan replica: “Oh, sim, és. És tão fungível como o caralho”. Afastando-se, Rhea retruca “Óptimo. Então, diverte-me. Vai em frente. Tenta.” Esta cena representa a maior agitação de Logan, que é o controlo monárquico- patriarcal em desvanecimento em que outrora viveu. Uma inâmica em que nunca podemos ser reconhecidos, porque é a negação do reconhecimento que torna o outro poderoso, só há duas opções: quer negando à força o nosso Outro particular como guardião do nosso reconhecimento, revelando absurdidade em jogo, quer quebrando essa dinâmica, criando uma saída para o outro, fazendo-o compreender que o seu desejo não deve necessariamente depender da posição que assumiu.

A figura mais patética, Connor, vive num mundo imaginário perturbadoramente sustentado polo poder do dinheiro. Connor casa-se com a mulher da sua escolha, candidata-se a presidente dos EUA e continua a brincar de ser o que quer sem ser confrontado com a realidade.  E finalmente, o sobrinho Greg é um Edgar (conhecido como “Pobre Tom” ou o bastardo no Rei Lear) a quem a ambição há moito o dominou também de braço dado de Tom .A crise de Roman no funeral, no final do penúltimo capítulo, é a demonstração definitiva de que ele não serve para isso, ao contrário de Tom Wambsgans, o marido de Shiv e verdadeiro candidato a “killer” entregado desde o começo a acentuar e manipular as eivas internas da família para arranjar a sua própria ascensão social e , neste aspecto, reflectir mais o exemplo de Logan Roy do que os filhos herdeiros que teimam provar ao pai, uma vez e outra, que já são tão maduros que podem virar-se contra ele, mas acabam por mostrar ainda mais a sua própria puerilidade. Nenhum deles consegue obter qualquer satisfação com o estilo de vida luxuoso polo qual moitos teimam durante toda a sua vida apenas para obter uma pequena parte. Os Roys estão presos num impasse inquebrável: por um lado, o seu pai todo-poderoso constitui o grande Outro e, por isso, fazem tudo o que podem para obter o seu reconhecimento. Mas para Logan, os seus filhos são esse grande Outro. O rei Logan  é consumido pola ideia de que os seus filhos desejam o que é seu, a sua riqueza e a sua posição de poder. Assim, as relações hierárquicas que estruturam a família e as empresas  permitem que os mais ricos assumam um relevo  político que se torna uma plutocracia.

Desejo bloqueado

 Succession é frequentemente comparada a King Lear de Shakespeare. Para irmos encerrando, se me permitem, neste ponto o paralelismo com os personagens de Rei Lear é óbvio mesmo correndo o risco de imaginar ocasional spoiler para quem conheça o drama de Shakespeare projetado agora na versão do capitalismo  traumatizante que se corresponde com a estrutura empresarial do neoliberalismo em crise. O que não significa que o neoliberalismo (o modo contemporâneo de gestão do capitalismo) esteja politicamente enfraquecido ou desaparecendo mas que ele está tentando sobreviver. É por isso que é necessário notar que o pano de fundo das disputas familiares pelo poder é o silêncio social (desde o neoliberalismo no final dos anos 70 nos Estados Unidos) com uma ruptura moi forte, destruição maciça de organizações sociais, sindicatos, mudanças legais extremamente poderosas…É precisamente a centralidade da série no interior da família Roy na luta pola sucessão e as suas relações directas com o poder do Estado. Por exemplo, colocar presidentes da sua corda, afinal, a própria definição do neoliberalismo é ter um Estado forte que organize os mercados e proteja o capital. Lembremos que  Foucault (1979) mostra que o neoliberalismo não é uma retirada do Estado, mas um governo pelo mercado que torna mais ruidoso  em Successsion o meio social silenciado -se não simplesmente inexistente- entre aqueles que sentem directamente a crise do capitalismo (inflação, desigualdades, um mundo do trabalho degradado com empregos criados que ninguém quer fazer, etc.) e um poder que continua a acreditar que está em 1994, que basta baixar o custo do trabalho e os impostos para conseguir o crescimento, que, por sua vez, resolverá todos os problemas.Não há maior triunfo para o neoliberalismo do que ter convencido seus oponentes de que a transformação social  e o reconhecimento ocorre por meio da agregação de escolhas individuais de vida ou consumo produzido pela competição econômica. Porém, como Logan Roy com seus filhos,  nunca poderá conceder-lhes o reconhecimento que desejam, porque, ao fazê-lo, estaria a perder precisamente aquilo que ele pensa que o Outro deseja e que, por isso, tem de conservar para ser reconhecido por eles. Nos momentos em que Logan provoca os filhos, prometendo a cada um deles  por separado a herança do seu império (para depois a retirar uma e outra vez, de uma forma ou de outra), podemos ver como esta dinâmica se manifesta. Nessas cenas, podemos ouvir os seus filhos e filhas perguntarem uma e outra vez: “Isto é real?”, e nós, como espectadores, sabemos que não é e que nunca será, porque só mantendo-os suficientemente esperançosos de que poderia ser, desta vez, é que Logan exerce o seu domínio.

Os nossos desejos são moldados polas ideologias que permeiam a nossa consciência colectiva. Aqui entramos no domínio de uma crítica capitalista da sociedade: o consumismo individualista funciona incutindo a noção de que podemos adquirir reconhecimento através do Outro, acumulando os bens materiais e imateriais relevantes para as cadeias de valor que constituem os fundamentos económicos dos nossos respectivos meios. Operar e agir dentro do quadro legal não torna as nossas acções mais éticas ou compassivas.

Logan Roy não queria acreditar que ia morrer, mas este Rei não é um Deus mas simboliza a quinta-essência do capitalismo antropológico para perpetuar-se em nome de engordar as massas de lucro dum conjunto de monopólios. Para continuar a farsa de que fazem parte, na elegia do penúltimo episódio, ficou implícito que Logan Roy era legitimamente poderoso quando os bos filhos acreditam que ele era competente, que havia algo afectivamente especial dentro dele se isso for possível dentro da linguagem de gênero patriarcal que age como mecanismo de control e que estrutura a familia como um negócio e os negócios se alicerçam com um familiarismo equívoco e  imoralmente “killer” propício para gerar  individualismos narcisistas e  submissões. Nesta contorna, a mercantilização e as relações hierárquicas foram levadas ao extremo. Apocalipse sem alvo e sem sonho. É assim que vivem, sofrem e traem? Como muitos outros, ele tem uma única lealdade, a lealdade a si mesmo? Só se preocupa com sua sobrevivência comendo todo em seu caminho, seja a concorrência, a própria família, a Junta Directiva ou os parceiros de investidura? 

Enquanto isso, o mundo real empobrece, o desemprego cresce e a ultra direita avança sob o manto de fingimento digital e sob efeito das eleições como anestesia, o neoliberalismo continua a semear sensação de classe média, de elite exibicionista que partilha a mesma miséria psicológica interior. Esta interacção paradoxal de personagens que, para nós, parecem ter todo e que, no entanto, não concedem umas às outras e a si próprias nenhuma das cousas que desejam, revela o vazio de uma ideologia que promete a realização apenas através da riqueza. Não nos podemos sentir satisfeitos com a realização das nossas pulsões enquanto o nosso desejo de reconhecimento por parte das figuras que funcionam como pontos de fixação dos nossos sistemas de valores não for satisfeito. É por isso que podemos perceber porque os Roys nos parecem perdidos, presos nos seus lofts vazios, de um lugar para outro em seus aviões e helicópteros particulares, sempre tão insatisfeitos, independentemente do que, aparentemente, fazem. Apercebemo-nos de que, mesmo que estivessem em condições de destronar o pai, não estariam melhor, pois o que desejam é apenas o que ele lhes pode dar porque o que foi mostrado é que uma sociedade mercantilizada em que a própria estrutura da familia é um negócio, o seu sucesso depende de anular as convenções morais. Porque, no final, o que fica na retina é a desolação moral das personagens a desmantelar esta visão ingénua do grande capital do discurso CSR (”corporate social responsibility”) e das partes interessadas (“stakeholders’ capitalism”).

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