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The social dilemma: quando o cliente é o produto

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O golpe de estado com base na exploração de dados e não nos tanques – que pudemos acompanhar ao vivo desde o outono passado em Bolivia- deitou nas redes um quadro completo do racismo estrutural que sobrevive no país andino: a intolerância cruceñista de fasquia supremacista (nação camba), a retórica ecuménica evangelista que identifica a riqueza como uma benção de deus e os efeitos colaterais do negócio cancel culture , entre o flak e o hashtag denegridor dos indígenas, quer personificados em Evo Morales, quer na esquerda toda identificada com o MAS.

Um documentário bem interessante por tudo o que omite, The Network Dilemma, foi lançado recentemente em Netflix. Vários programadores e funcionários de empresas de tecnologia do Silicon Valley e do Big Tech, “arrependidos” seica por sua contribuição para as práticas duvidosas de marketing de mídia social, contam-nos qual é o verdadeiro negócio desses aplicativos “de balde”. O documentário dura uma hora e meia, e são tantas as mensagens e avisos, muitos deles para os mais novos que torna difícil a escolha. Talvez o mais importante seja que nós, os usuários, somos o produto. Quando um produto é de balde para o cliente, afirmam, isso significa que o cliente é o produto. Nós somos o que vendem. No entanto, essas mesmas mídias e redes, nas quais a maioria dos usuários se dedica a retuitar o que a elite da mídia  diz, terminam concluindo em essência -para continuarmos com o exemplo boliviano- que a OEA e a doutrina Monroe são um exemplo de princípios para o mundo e, consequentemente, o modelo econômico que as empresas digitais espremem, por mais que denunciem seus efeitos preocupantes nas pessoas e sua influência perniciosa nos processos políticos. E mesmo vamos acabar falando  sobre manipulação, as fake news, o desvirtuamento de comportamentos políticos, mesmo o branqueado da extrema direita  e das empresas extrativistas do público, mas não do capitalismo tout court, que sempre é de vigilância. Portanto, não somente os nossos dados capturados pelas plataformas digitais, mas o mapeamento completo dos  comportamentos que sirvam para conduzir a oferta de produtos de consumo. Um dos entrevistados expressa assim: o produto vendido é “certeza”. Mas, vai além. Passaram a interferir ativamente em comportamentos indutores duma determinada percepção da realidade.Tudo aquilo conhecido e familiar no velho mundo da propaganda:  indução de comportamento, modelagem de valores, criação de necessidades.

Vendem nossa atenção na tela. Quanto mais tempo ficarmos presos ao aplicativo, maior será a receita da empresa. Isso não foi diferente com a televisão e, ultimamente também, a imprensa digital convencional. A diferença é que agora os meios e trebelhos usados ​​para aumentar esse tempo de permanência são para estabelecer um viés na comunicação. Quer dizer, os algoritmos lançam notificações e sugerem conteúdo que pode não ser verdadeiro ou contrastado, mas confirma o que pensamos. No caso boliviano, a mídia de elite, apesar de relatar os relatórios solventes que questionavam a metodologia apresentada pela OEA que servía de alicerçe intelectual para a teoria da fraude eleitoral mas não para um golpe, apenas serviu para coagular a versão oficialista.

Isso explica, em parte, a crescente polarização política que estamos percebendo na Bolívia e que fitamos nos Estados Unidos, na Europa ou em qualquer país onde as redes sociais tem forte penetração. O resultado é uma sociedade não desinformada, mas informada com um nesgo apenas comparável à propaganda das ditaduras. A instabilidade política e o populismo, nomeadamente o de direitas, dizem os técnicos, são o resultado do uso do ódio, do ativismo e da intolerância como forma de conectarmos a uma rede. O surpreendente é que apenas na aparência, por meio de algoritmos, uma mesma rede promove duas ideologias opostas, pois nos colocará em contato e notificará conteúdos de quem pensa como nós. Mas este é apenas um efeito de superfície quando o que parece elidido é o que permanece inquestionável:  o modelo neoliberal. Sexto filtro, o tecnológico, segundo, o eficaz Modelo de Propaganda  de Herman-Chomsky que continuou o da  Escola de Frankfurt e a noção lukácsiana de manipulação, todos eles anteriores á incubação das redes, acaba desenvolvendo para as necessidades presentes o primeiro filtro -e más óbvio desde as categorias pròprias da economia política marxista- ou seja, a concentração de propriedade da mídia e a necessidade de obter lucro das empresas de mídia dominantes criam um viés e um preconceito  até fabricar consenso (manufacturing consent)

Velaí os algoritmos. Quando detectam passarmos algum tempo sem entrar numa rede social, ativam toda uma série de chamarizes direcionadas a virmos ao rêgo. Notificações de que alguém o rechiou ou etiquetou numa foto, por exemplo, nada mais são do que uma escusa de entrar no aplicativo quando não era o planejado (consumindo cada vez mais tempo). Uma engrenagem sem dúvida perversa do capitalismo de vigilância que fica em evidência na aparente inocência das recomendações do final relatada pelos seus protagonistas principais, aparentemente atordoados pela dimensão manipulatória que contribuíram com seu conhecimento técnico. Eis o mito da neutralidade da tecnologia. Para os criadores do documentário, os algoritmos uma vez criados passam a funcionar sem a interferência direta de seus criadores e executores, algo próximo da chamada inteligência artificial ou educação de máquina. Os entrevistados chegam afirmar que a grande maioria dos envolvidos não têm ideia de como realmente funcionam os programas que eles instalam e desenvolvem. Mas o que prevaleceu  não foram as  boas intenções de seus criadores,  inseridos numa divisão do trabalho na que prevalece a segmentação especializada, não a parceria colaborativa, ja que o produto total resulta do somatório de vários trabalhos particulares que finalmente foge da compreensão dos seus criadores. Saber nada inocente. Aquela forma particular de alienação, característica da coisificação das relações sociais mediadas pela técnica, que torna as pessoas semelhantes às máquinas. O que para Adorno  é supervalorizada e fetichizada pela tecnica a tal ponto que as pessoas se relacionam com ela de forma exagerada e irracional, tornando-a o cerne da vida. Processo de coisificação pelo qual as pessoas perdem os traços de subjetividade e individualidade, passando a compor um coletivo de pessoas que tem a vida mediada pela técnica.

Não há nada novo. Tais como aquelas firmas de aparência radical ou aqueles desvios da norma (por exemplo, o contra-relatório ao funcionário da OEA sobre as eleições na Bolívia em 2019 foi publicado pelo Washington Post e NYM) que só servem para divulgar a ideia de que a mídia  tradicional é livre e diversificada e, portanto, as legitima como instituições democráticas plurais. Nada mais longe e nada menos neutro do que a rede. Afinal, a comunicação em linha e nas redes sociais, por ser um instrumento transformador da ação social, tem uma incidência subalterna nas condições atuais em comparação com a grande mídia. Seu contrapoder pode ser válido se for acompanhado por transformações nas relações de poder, nomeadamente em coordenação com mudanças mais amplas ou processo de mudança social, tanto as condições materiais quanto a quebra das disparidades de origem e de control corporativo, a alfabetização informacional e a democratização da mídia. O que já estava acontecendo na Bolívia e o governo de facto não foi capaz de reverter, apesar de ultrapassarem seus poderes e dos massacres de Senkata e Sacaba. Por isso o MAS voltou a vencer. Sem falsos dilemas.

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