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Europa, Opinião, Politica espanhola, Saúde — 5 Xullo, 2022 at 11:16 p.m.

Maternidade de Elna | “Uma ilha de paz no meio dum oceano de destruição”

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Atravessar a fronteira da Jonquera para acessar à Catalunha Norte na França administrativa envolve hoje o mesmo esforço que ir de Girona a Barcelona, ​​​​agora jà sem portagens mas com intenso fluxo de viaturas da Europa dos mercadores. Porèm, na ajardinada vila de Elna no Rosselló catalão que esta manhã podemos visitar de carro com total indiferença ao que está acontecendo nas fronteiras de Europa, há um edifício na altura abandonado e em 2004 reabilitado para dar a conhecer a sua breve mas fecunda façanha no meio do horror. Um lugar de exceção. Porque a rota do exilio levou a milheiros de republicanos a um não-lugar. Um não-lugar não é qualquer lugar ou nenhum lugar. Um nao-lugar é aquele espaço sem lubre, sem alçado e sem abrigo. A intempérie é o estado do sem refúgio. A  intempérie de Gaza,  Guantánamo e Abu-Ghraib, Donbass, Síria, Lesbos e das  “travessias ilegais”, do Sahel e Melilha á fronteira Mexico-Estados Unidos, ….

No final da guerra na Espanha (1936-39), a queda da frente catalã e a captura de Barcelona pelo exército de Franco em 26 de janeiro de 1939 precipitaram o êxodo dos republicanos para a França.Em pouco mais de uma semana, meio milhão de pessoas cruzam os Pirineus através do Pertus, mas também pelas montanhas, sob a neve. Mulheres, homens, idosos e crianças feridas de guerra, bem como soldados e oficiais do Exército Republicano, membros do governo e voluntários das Brigadas Internacionais.À chegada, serão enviados para campos de internamento e concentração.

As mulheres exiliadas nos campos de Argelers, Barcarés, St. Cebrià i Ribesaltes, na França de Vichy, tornaram-se refugiadas a seu quando foram lá parir numa torre que desde então tem sido chamada Maternidade Suíça ou de Elna, outrora casa de verão dum empresário de Perpignan. O campo mais próximo de Argelers concentrava, em condições de humidade, frio, fome, piolhos, sarna e estupro aos republicanos que fugiram do genocido franquista após perder a guerra. Cerca de 100.000 pessoas chegaram em menos de 7 dias. Um acampamento com 300 alboios que foram construídos pelas maos dos próprios exiliados e durou 2 anos para receber 465.000 pessoas que por lá passaram famintos, fisica e moralmente derrotados. A mortalidade de recém-nascidos nesses campos ultrapassou 90%. Um não-lugar deve ser algo assim. E seu oposto, a manutenção dum mundo habitável.

Verão de 1942. Já se passaram três anos desde que a mestra  suíça  Elisabeth Eidenbenz começou a recolher mulheres grávidas nos areais de arame farpado, onde viviam de forma desumana, para ajudá-las a parir e oferecer-lhes um lugar seguro para viver, alimentar e criar suas filhas. Naquele verão, porém, as autoridades de Vichy pretendiam fechá-la. A doula Eindenbez (finada em 2011 aos 98 anos) vai fundar  no Rosselló a Maternidade de Elna quando tinha 29 anos e centenas de milhares de refugiados da guerra espanhola foram presos em campos de concentração insalubres quando pensavam em chegar á Catalunha Norte, numa França que não lhes oferecia refúgio do exército fascista que os perseguia. A partir da eclosão da Segunda Guerra Mundial, a maternidade também começou a acubilhar mães ciganas catalãs e judias que  fugiam da perseguição nazista, e ali nasceram também cerca de 200 crianças judias. Os alemães ocuparam o sul da França em novembro de 1942 e começaram a procurá-los para trancá-los em campos de extermínio. As  frequentes visitas e inspeções da Gestapo  levou ao exército alemão a fechar a maternidade  na Páscoa de 1944.

“Minha maior satisfação é que o lugar se tornou uma ilha de paz no meio do inferno;  oxigênio para pular, para continuar vivendo”, diz Elisabeth em entrevista gravada em vídeo no posto de informações

Nestas circunstâncias terríveis, uma enfermeira suíça que aprendera pouco castelhano ajudando os feridos durante a guerra na Espanha, foi enviada pela Ajuda Suíça aos campos de concentração da Retirada1 para estudar se era possível levar algum socorro aos refugiados. Elisabeth ficou tão espantada com o sofrimento das mulheres em trabalho de parto e as condições em que as crianças deviam nascer no areal, que assumiu a responsabilidade de melhorar a sua situação. Percorreu predios e herdades procurando um lugar onde pudesse levar os recém-nascidos e bem perto da vila de Elna, descobriu uma antiga mansão de quatro andares, em ruínas e sem condições, mas da qual ficou impressionada com a luzada que entrava pelas enormes janelas.

Apenas houve tempo para reconstruir o telhado com medios da Ajuda Suíça. A enfermeira distribuiu-os nos diferentes andares em espaços diáfanos onde as mães pudessem estar com as filhas; para tantas delas que não têm nenhuma experiência de parto, a própria Eidenbenz as instruiu, encorajou e acompanhou. Em pouco tempo, a organização multiplicou o número de mulheres gràvidas atendidas. Nenhuma mulher  foi afastada e expulsa por motivos ideológicos, políticos ou raciais e no medio da infamia e perseguição abrolhou a vida. Em Elna nasceram 597 crianças, filhas e filhos de refugiados de guerra da Espanha e da Europa, judeas polonesas, alemães e húngaras. Algumas testemunhas ainda se lembram de como Elisabeth enfrontou os gendarmes francêses, dizendo-lhes que a maternidade era território da Suíça e que não tinham autoridade. Eis a abrangencia do cuidado quando a  noção médica atinge também a dimensionalidade da preocupação e do afã e empenho para incluir ajuda dissociada da mera caridade, atingindo as condições reais em que essa “ajuda” se manifesta e passa a “assumir o comando”. Providenciar o que for necessário para que os cuidados sejam dispensados, assegurando a forma como o cuidado será recebido e os efeitos que produz, tão pronto se transforme em autocuidado que ocontece, jà sem volta nem remissão, por capacitação e empoderamento. Eidenbenz vai procurar mullheres nos campos de concentração franceses para serem formadas e contradas nas labores de cuidado e para garantir a  sustentabilidade do projeto reconstruindo tanto quanto possível os laços perdidos das mães quanto das cuidadoras. No possível, o cuidado como  continuidade do sentido de parir em condições que se tornaram  insuportáveis.

Décadas de olhos fechados e deixar passar em silêncio. O prédio foi abandonado até ser adquirido por um artesão na década de 1990 para estabelecer o seu obradoiro de vitrais. Lá conheceu em 2001 a Guy Eckstein, de descendência judia, que foi uma das crianças nascidas na maternidade e contou-lhe a história do prédio, desconhecida para ele e para muitos após sintomático desaparecimento. Juntos decidiram procurar a ex-enfermeira e, em 2002, a história perdida no esquecimento veio à tona quando a prefeitura decidiu fazer uma homenagem institucional a Elisabeth Eidenbenz. Desde então recebeu a Medalha dos Justos entre as Nações (2002), atribuída pelo Estado de Israel, a Cruz da Ordem da Solidariedade Social (2006), atribuída pelo estado espanhol, a Creu de Sant Jordi (2006), de la Generalitat de Catalunya, e a Legião de Honra (2007), do governo da França.

Um lugar de exceção olhando o Canigó2 . Como também é  exceção que um Roselló em que ganha repetidamente a extrema direita de Le Pen, o prefeito comunista da vila de Elna, Nicolás García, neto de refugiados republicanos, porfiara até tornar a maternidade num símbolo de solidariedade internacional .

 

1. La Retirada é o nome que define, nos países catalães, Occitânia e França, o êxodo republicano de 1939 que ocorreu no final da guerra civil espanhola.

2. O Canigó é uma montanha dos Pirenéus que tem um valor simbólico mui importante para os catalães e domina toda a planície do Tet e Perpignan.

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