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O algoritmo ajuda-nos ou nos substitui?

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É mesmo ingênuo pensarmos que neste intre somos anónimos. Passamos dias e dias distribuindo nossos dados para todos os tipos de empresas e servidores (eufemismo eficaz que subverte o sentido de quem serve e é servido); nossa pegada digital ao nos retratar serve para rastejamento geográfico. E o medo de vendê-la, de usá-la sem nosso consentimento e contra nós, em questões de saúde, emprego, hábitos e gostos, é mais do que bem fundamentado.

A Organização Mundial da Saúde fornece um guia para ajudar políticos e funcionários a decidir se a quarentena é ética e como garantir que qualquer bloqueio seja feito corretamente. Numa declaração feita em 12 de março, o Diretor Geral da Organização Mundial da Saúde disse:”Esta é uma pandemia controlável. Os países que decidem desistir de medidas fundamentais de saúde pública podem acabar com um problema maior e um fardo mais pesado para o sistema de saúde que exige medidas mais severas de controle. Todos os países devem encontrar um bom equilíbrio entre proteger a saúde, impedir perturbações económicas e sociais e respeitar os direitos humanos. Instamos todos os países a adotarem uma abordagem abrangente, adaptada às suas circunstâncias – com a contenção como pilar central.”

De fato, Vestager, a vice-presidente europeia de assuntos digitais, apresentou em fevereiro de 2020 seu plano de a Europa recuperar o terreno ganhado pela China e os Estados Unidos. Serão gastos 20 biliões de euros na criação de um espaço de dados comum e na regulação da inteligência artificial.

Como na Espanha, na semana passada, foi relatado que funcionários do governo do Reino Unido estão considerando para indivíduos testados e confirmados como imunes ao vírus COVID-19. A ideia básica é que aqueles que contraíram e se recuperaram do vírus podem ser isentos de quaisquer restrições de bloqueio existentes e podem retornar à “vida normal” – pelo menos o máximo possível. Isso permitiria que pessoas “saudáveis” voltassem ao trabalho e se moverem livremente. Em outras palavras, alguns indivíduos podem ser sistematicamente reconhecidos por possuírem capacidades especiais e, à luz disso, podem receber um conjunto único de direitos, privilégios e talvez deveres.

O Instituto Nacional de Estatística apenas se livrou das críticas à vigilância invasiva no ano passado. Havia quem receasse controlá-lo por telefone celular se ele fosse a uma das manifestações convocadas em protesto à sentença do julgamento do Procès na Catalunha. A controvérsia que gerou o uso de dados telefónicos para realizar estudos de mobilidade está agora, no meio do cenário sombrio do coronavírus, é mais atenuada, especialmente se um novo controle ajudar a retardar sua expansão. O BOE coleta a ordem do Ministerio de Sanidad de fazer um widget, semelhante à que já há na Catalunha e na Comunidade de Madrid, que permite que os cidadãos se auto-avaliem e recebam uma série de dicas práticas que permitirão saber onde cada um está cada momento. O debate sobre a conveniência ou o perigo de aplicar os modelos de países asiáticos, que rastreiam indivíduos para descobrir quem eles contatar, está-se a abrir.

E embora eu esteja obviamente influenciado pela imersão no desassossego foucaultiano de biopoder, não podemos obviar nas motivações e nas implicações éticas ainda rastrear para onde as pessoas vão e com quem interagem, algo que o Estado e os instituições e as autoridades de saúde pública  vêm fazendo há séculos,é mais fácil com informações digitais avançar na utopia do controle total. O poder do Estado, de acordo com a tese básica de Foucault, tem a tendência natural de se proteger, de expandir e testar sua força contra a massa dos indefesos. E independentemente de haver uma emergência real Quero refletir sobre alguns deles aqui, especificamente sobre a desigualdade e segregação que podem ser imaginadas como decorrentes de um programa governamental para instituir passaportes de imunidade COVID-19. Para quem não quer continuar lendo, o conto é: para evitar a segregação distópica em tempos de crise, as melhores decisões de políticas sociais e económicas são melhor tomadas coletivamente, mesmo entre indivíduos isolados.

Parece que a motivação subjacente para implantar um sistema de passaporte de imunidade pode ser relativamente bem-intencionada, que alicerça nalgumas considerações positivas. Claramente, a idéia de distanciamento social é recebida com certa resistência por aqueles que valorizam muito a interação social, e talvez até por aqueles que são mais introvertidos, caso os bloqueios persistam por um período prolongado. De fato, a natureza social da humanidade levou a relatos de que o isolamento prejudicará nossa saúde mental e, mesmo muito tempo após o pico de infeções, trará uma pandemia secundária de problemas de saúde mental, incluindo aumento da ansiedade ou estresse pós-traumático. Dessa forma, a oportunidade de receber um passaporte – uma viagem de volta ao mundo social – seria um desenvolvimento muito bem-vindo para muitos de nós (assumindo que não estamos sozinhos quando lá chegamos).

Outra motivação bem-intencionada de um sistema de passaporte COVID-19 é, obviamente, ajudar a virar a maré da crise de saúde imediata e na correspondente desaceleração económica. Com os profissionais de saúde, com boa saúde e sem risco para os outros, as instalações essências podem ter uma equipe mais adequada e totalmente funcional – essa é uma justificativa essencial para maximizar os benefícios da priorização dos profissionais de saúde na linha de frente na distribuição de recursos escassos e atendimento médico. No entanto, não está claro se aqueles que contraem o vírus e se recuperam estarão imunes ou por quanto tempo. Em termos de efeitos económicos, a situação mundial parece igualmente incerta. Alguns dias atrás, o New York Times informou que as taxas de desemprego nos EUA atingiram 6,6 milhões sem precedentes apenas na semana passada, cerca de dez vezes o recorde anterior de registos de desemprego estabelecido em 1982. Também aqui, oportunidades de receber um passaporte COVID-19 pode parecer uma jogada importante, tanto para os profissionais de saúde essências quanto para os membros menos essenciais da força de trabalho, simplesmente para ressuscitar a economia. Deve ser óbvio, mas durante uma quarentena ou bloqueio, as necessidades básicas das pessoas devem ser atendidas. Isso significa acesso a alimentos, água, assistência médica e até mesmo compensação por perda de renda. Singapura cobriu os custos de saúde (menos os custos ambulatórios) para pessoas com COVID-19. Isto é citado como uma das razões pelas quais a propagação da doença é menos grave em Singapura do que em outras partes do mundo.

No entanto, como alguns argumentam de jeito persuasivo, arriscar vidas pelo bem da economia é profundamente perturbador – e de fato apresenta uma escolha falsa. E, novamente, deve-se ter em mente que vários pesquisadores sugeriram que a recuperação do vírus não garante imunidade futura. Embora testes bem-sucedidos de anticorpos tenham sido desenvolvidos na Itália, Alemanha e China, o consenso na comunidade científica é que, até o momento, ainda há muitas incógnitas sobre como o corpo se recupera duma infecção por COVID-19. The Scientist nunciou que existem grandes problemas com muitos dos estudos relacionados a COVID-19 que agora estão sendo publicados em revistas médicas para pré-publicação, e apenas poucos virologistas estão disponíveis para realizar avaliações por pares. Com tanta demanda para avançar, os artigos estão sendo relatados como evidência médica quando ainda nem foram revisados por pares ou selecionados para publicação.

Se o governo central reverter as restrições, apenas para ter que re-implementá-las novamente algumas semanas ou um mês devido a um segundo surto, isso pode aprofundar a crise da democracia. Essa é a diferença entre oferecer um cenário plausível para diminuir as restrições, e não o oportuno. De fato, a China acaba de registrar seu maior aumento de novas infeções em seis semanas. Apesar de inicialmente ter suprimido a primeira grande onda da pandemia, os cidadãos que retornam do exterior trouxeram os casos com eles. Nenhuma evidência ainda da duração da imunidade e se alguns indivíduos recuperados têm um nível alto de anticorpos suficiente para combater este coronavírus pela segunda vez, tornando os testes de anticorpos e os certificados de imunidade implausíveis como estratégias de saída.

Se isso acontecesse, seria possível argumentar a favor de indivíduos selecionados não apenas serem isentos de restrições de bloqueio, mas também serem moralmente obrigados a marchar para as linhas de frente e ajudar. Pois, como um bom super-herói, eles saberiam que com “grande poder vem uma grande responsabilidade”.

A escala galega: faz algum sentido usar certificados de imunidade em pequenas vilas, aldeias e cidades onde todos se conhecem?  Deixe-me ser cético em relação à sua viabilidade risco de criar ressentimento ao dividir a sociedade em dois grupos, onde um pode ter uma vida normal e o outro não, seria extremamente prejudicial à solidariedade local e inter-vicinal e ainda de comunidade, que mantém a sociedade unida no momento. Um plano assim só pode ser considerado ético se  mantivermos todas as outras medidas de distanciamento social, como ficar a 1,5 metros de distância ou usar máscaras, para proteger os saudáveis e os vulneráveis. Isso pode ser extremamente difícil de fazer em certos cenários, como nos transportes públicos que muitas pessoas usam para chegar ao trabalho, nos barcos, em muitas empresas, e nas escolas e universidades.

Ao cabo, o algoritmo ajuda-nos ou nos substitui? As democracias não podem deixar o processo que acompanha a transformação digital nas mãos do tecno-poder, o das grandes empresas de tecnologia, porque a tecnologia não é neutra. Se não houver um ambiente de equidade, um ambiente legal que a regule, entraremos em um modelo perturbador de sociedade. Essa caste de  propostas são sintoma duma sociedade insegura. Ainda o impulso por trás da ideia seja compreensível Parece que lidamos melhor um engarrafamento de tráfego em que estou preso quando sei que terminará em meia hora em comparação a não saber nada. Precisamos saber o que estamos fazendo, apesar de agora também não sabermos.

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