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Ciencia, COVID-19, Opinião, Pensamento, Política, Saúde, Xente — 9 Abril, 2020 at 9:53 a.m.

Quando a epidemiologia não alcança… Kierkegaard

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Com a pandemia, há mais interesse em valores essenciais

Não acha que é doloroso viver na sociedade de hoje?

Ten que dizer para si mesmo:

Oh, morte, corra para vir, para que eu não esqueçer de mim!

Marco Aurélio

O andaço de coronavírus COVID-19 (SARS-2), sem ser nada novo ou sem precedentes, causou uma interrupção da vida laboral-produtiva em todo o mundo. Além de tirar a vida, os surtos de doenças infecciosas  podem ter efeitos psicológicos a curto e longo prazo na gente, nomeadamente nas pessoas vulnerábeis, em suas famílias, nos profissionais de saúde que cuidam e nas comunidades onde os surtos são relatados. Em quem realmente se importa. As medidas de distanciamento social como quarentena, isolamento e restrições de viagens destinadas a limitar a propagação da doença também podem contribuir para depressão, essa doença dum tempo frenético que nos obriga a não parar. Quando precisamos de mais presença, do abraço e da mão e de palavras que se tocam, temos que contentar-nos com palavras acartonadas na falta de olhada e de acompanhamento emocional. A prioridade dos cuidados de saúde  de guerra prioriza protocolos nos quais as condições de morte digna são obliteradas.Na esteira voltairiano,  Nietzsche nos diz na Genealogia da moral: “o que realmente revolta contra a dor não é a dor em si, mas o absurdo da dor”.

A igualdade que deve ser exigida é a “igualdade de condições” diante da dor e da morte, isto é, diante das deficiências e déficits humanos. Esse campo de jogo equitativo significa o direito de que todos temos de rejeitar a imposição de toda a dor não consensual institucionalizada.

Para além da velha (EUA e Europa) e nova (China, Japão, etc) competencia entre imperios, insuficente para coagular no horizonte a figura dum estado mundial capitalista, o que fica na olhada é a capacidade  de poder dos estados para impor  às massas populares e á burguesia restrições consideráveis com o alvo de salvar o capitalismo local. A epidemia apesar de ser um bom momento para revisitar a contradição entre economia e politica,  a  lógica de situação não deve varrer inteiramente o afago situacionista.

Porque precisamos dum certo isolamento completamente necessário para trabalharmos novas figuras de sujeito e de política, nem que apenas fora para imaginar novas afirmações e convicções relativas a hospitais e saúde pública, escolas e educação igualitária, atendimento a idosos. Nem que apenas fora para  termos vivencia do epidémico como um momento do epidérmico: para alguns talvez dissipando a atividade intrínseca da razão, entre a anamnese de quando a praga varria a terra (os que reconsideram o maldizer, a prece e a profecia ) e para  outros o  acubilho no cientismo e nas verdades controláveis da ciência  nas que honradamente se devotar (uma  estatística, uma frase neutra, uma curva logaritmica lugar-comum) mesmo quando convergir num movimento geral de propaganda duma sociedade que prolongou sua agonia de morte até o presente, ao chamado conciliar  e ecuménico, como naquela famosa frase situacionista sobre poesia, de que o fim da pandemia “deve ser obra de todos”.  A efectividade epidemiológica  tem certo aspecto progressista («a união faz a força» )  mas também serve para construir um ambiente dentro duma metafísica estatal dada. Um verdadeiro meio de educação de masas confinadas a vontade que o mesmo serve para incentivar todos os outros a fazer e   fornecer suporte e proteção fundamental para todos aqueles que estão mais expostos (sanitarios, idosos, frágeis, aqueles que não têm abrigo seguro…), como para mostrar que a adesão a essa disciplina rigorosa não atinge por igual aqueles que podendo obedecer ao imperativo “ficar na casa”  mudaram para uma segunda casa. Nada novo no horizonte disciplinar da propiedade e do lazer programado.

A neurociência mostrou nos anos 90 que razão e emoção são dois alicerçes essenciais da inteligência, coexistência, aprendizado e saúde holística. Emmanuel Kant colocou isso um pouco antes, quando ele completou a razão crítica (pura) com a razão débil ou mol. Mas ainda agimos como se não soubéssemos disso. Talvez, essas circunstâncias  não exigem mais modelagem epidemiológicas, mas filosofia (ou talvez não). A questão – o que devo fazer? – é, afinal, uma variante da primeira questão filosófica, a saber, como devo viver? Isso nos leva a traduzir a pergunta novamente para um nível em que nenhuma pergunta é feita na primeira pessoa, ou seja, sua transferência para o campo sempre plural do pensamento prático: quem somos nós, ti e eu? Aqui está a pergunta à qual não saberíamos responder, exceto por experiências ou desejos de solidariedade,apoio mútuo, piedade, comunicação, confiança, troca,

Perguntamo-nos se, além dos medos ou da necessidade de exercício e consumo, os dias em que ficamos confinados foram uns dias desnecessariamente servis diante dos poderes existentes(que na verdade, mesmo sem concordar,  estão simplesmente fazendo o que são obrigados pela natureza do fenômeno), se encontra fruição ou  alegria especial por estar obrigatoriamente consigo mesmo e com a gente, na perspectiva do “Nunca Mais” e o feito de ver a morte a nos assombrar. Devo tirar proveito desse interlúdio epidêmico pra que não fique apenas em epidérmico? Certamente, há gente que se pregunta: “Mereço essa sorte? Eu diría que non, de maneira alguma. Alén disso, isso não vai acontecer comigo!”

Combinamos a tensão psicológica da inação e a dificuldade de viver na ignorância. Sabemos pouco.  Ninguém pode dizer quando  as coisas vão «normalizar» – o que quer que isso signifique no mundo pós-Covid-19. Portanto, não podemos consolar-nos com a noção de que o isolamento será breve ou de que o alívio está a caminho. Não existe vacina, ou seja, não há garantia de que os esforços de contenção não continuem indefinidamente ou se tornem periodicamente comuns caso a vida «normal» seja retomada. Mas o desespero não é uma maneira de lidar, e certamente não com uma emergência que não tem fim visível (seica não podemos prever a próxima pandemia, mas há um risco real).Contentamos em viver à moda e nos antípodas do que era antes chamado elevação do espírito, para nos esvaziarmos na atenção frenética do exterior. Pode parecer banal, mas transformar sua própria vida em uma obra (algo que nosso convidado fez maravilhosamente) é algo a ser levado a sério, uma vez que nos perguntamos: o que significa ser humano?. Nietzsche o chamou de amor fati, que significa a aceitação do que é, o que de forma alguma deve ser lido como rendição, conformidade ou adiamento do que existe, mas amor afirmativo pelo que torna. Vamos lá.

Nossa vida e, portanto, nossa experiência, comportamento e identidade (incluindo gênero) estão relacionadas a experiências de mudança, dor, risco, sintomas, ambivalência, solidão, experiência do “outro”, luto, ansiedade antes da morte e percepção do significado da vida. Nas perdas, nas derrotas, nos medos e angústias,  nas frustrações e alienações, o que se precisa é um re-trabalho do que sobra e o que resta.

A maioria de nós gostaria de passar por cima da ansiedade de pensar sobre a morte e acima de tudo, nossas fantasias. De facto, todos pensabamos que a epidemia viral não ia ser excepcional como outras que têm sido além ocidente: SARS-1, ebola, gripe, sarampo, etc. Porque vivemos nun sistema condicionado a um “feliz para sempre” e de repente, a dor de ser eu, a perspectiva dum curto período de tempo aparece diante de mim, tantas coisas que eu poderia fazer se sair deste beco…. Devo ficar na casa todo o tempo ou já deveria estar  a ir de carro caminho da praia ou das montanhas para me proteger melhor mesmo que isso signifique algumas horas de trânsito atrapalhado e expor os nativos felizes no seu confinamento periférico (já estao afeitos)? Por que deveria ser mais disciplinado na ausência de disciplina global em relação às vacinas e suprimentos necessários para atender gente que está muito pior que nós? O que devo fazer da minha vida? Devo retomar minha vida onde a deixei, apesar das circunstâncias que não dependem de min? Devo deixar sair a mulher que vive dentro de mim? Devo tentar parecer-me ao neno bonito do ginásio que faz todo mundo feliz? Talvez devesse exercitar menos os triceps, aderir a outra ONG, telefonar a miúdo  familiares e amigos e ficar mais tempo a debruçar acima dos livros. Ouvir  mais Mahler e pegar o Led Zeppelin onde o deixei trinta anos atrás. Deverei abandonar a normativa oficial do galego para abordar lexicamente o português ou deverei negar a mim mesmo essa elegre prosmicuidade  e tentar ser como nosso Feijoó? A vida é segundo Kierkeegard uma récua de escolhas. 

Feijoó escolheu  renunciar à língua emocional dos aborigens em suas comunicações oficiais sobre o coronavírus a uma população constrangida. Como  sua foi a  decisão de forçar a aposentadoria, baixar salários, reducir leitos nos hospitais e fazer contratos de lixo no Sergas.

A linguagem influencia as decisões morais dos indivíduos? Um estudo publicado  na revista científica americana ‘PloS ONE’ sustenta que a linguagem na qual um dilema ético está envolvido também influencia a tomada de decisão de caráter ético. Os experimentos consistiram em responder ao dilema de que vale a pena sacrificar a vida duma pessoa para economizar mais cinco, e os resultados mostram que as pessoas concordam mais quando o problema é resolvido em uma língua estrangeira do que em nativo. Segundo este estudo  a medida que a proficiência do falante de língua estrangeira aumenta, o componente emocional e psicológico cresce à medida que o processo intuitivo vence em detrimento do pragmático.

O envolvimento emocional dos indivíduos diminui à medida que a fala é dada em uma língua estrangeira, pois nesses casos a distância psicológica e o pragmatismo aumentam, porque as decisões são baseadas na aparência de  “racionalidade”.

No entanto, as coisas não são tão simples assim, porque, se assim for, não sentiríamos discordância com os comportamentos , manifestações ,  modos de sentir que nos são dados  “naturalmente” e é aí que o ser humano (independentemente do sexo / gênero) faz um esforço para “tomar as rédeas” do que lhe pertence: sua vida, seu corpo. Porque des-afeição não é sinônimo depreeminencia da razão. O que muitas vezes aparece sob o disfarce de racional e de cientismo nada mais é do que  instrumentalização. Caso contrário, não há decisões verdadeiramente racionais sem a assistência do emocional (razão branda, segundo Kant). Não há dúvida sobre a importância dos critérios científicos para nos aconselharem e tomarem as nossas decisões de acordo a eles, apesar do fato de os pesquisadores diferirem e  a unanimidade não ser uma questão de ciência, mas de crença. A tentação dos testamenteiros de se apoiar no medo do que há é grande,porque debulha o caminho. Tem mais: saber para onde as coisas devem ir.  A prioridade é salvar vidas, sem dúvida, mas assumindo que o risco é inerente à nossa existência. E que tudo não pode ser protegido. Mas o que surpreende é que vimos alguns escuros e obscenos número de mortes  nas residências e aqueles outros que a economia poderia suportar e, em vez disso,  apenas falamos do que agora timidamente começa a entrar no debate: a liberdade – que junto com a razão nos singulariza tanto quanto o irracional. O medo não deixa espaço para elas. Porque reduz a escolha. Preferimos uma vida postergada e vigilada ou em liberdade embora isso me afligir e angústiar. E é uma dica preocupante para enfrentar a pós-pandemia. Depois das religiões, depois das ideologias que foram fatores de progresso e devastação ao longo da história, agora é cientificismo  quem deve ser colocado entre parêntese, quando se baseia em sua aparência de verdade, isto é, quando a ciência se torna perturbada por uma instrumentalização falaciosa em que  só fica sectarismo – que é o que resta da política quando já não há limites para aqueles que abusam de suas prerrogativas tratando a gente como crianças.

Enquanto estou indeciso, o relógio não para. Nem param os efeitos emocionais da fala nem dos mídia e das redes sociais. Especialmente no nosso isolamento concentrado se mostram mais uma vez que são acima de tudo, além de seu papel em engordar millonarios, um lugar para a propagação dos ruxe-ruxe, da paralisia mental, a descoberta de ‘novidades’ do tempo de Maria Castanha , ou mesmo de obscurantismo fascista.

Vida e morte são interdependentes; existem simultaneamente e não consecutivamente e exercem uma enorme influência na experiência. Como não temos uma quantidade infinita de tempo, não podemos tentar um número infinito de opções. Segundo Søren – também eu leio Kierkeegard!- uma maneira tentadora de sair do poço existencial de opções esmagadoras sobre “o que ser” é simplesmente desligar. Para evitar a angústia existencial que decorre de muitas possibilidades, desconecto completamente do mundo para parar completamente a dor servindo-me uma boa porção de patacas bravas e procurando fartura conoutras excapatórias Netflix dou com a conferência de imprensa do governo central: “uma mulher que tentou vomitar em cima de vários policiais em Málaga foi detida…incumpliendo los reales decretos vigentes”.

Søren diz algo que promete: ficar dentro de mim, mas transformar isso numa virtude! Devemos estar á espreita de não confundi-lo com o utilitarismo vulgar do prazer pessoal sem o outro, pois ele pode ser transformado em gozo, apesar do outro, mesmo contra o outro. O egocentrismo narcísico, tão potenciado e brutalizado pela economia da auto-exploração, só atende ao meu prazer e nada mais. Ficar dentro de mim como virtude é desejo, tensão, movimento em ou na direção de… A vida é uma passarela: continuar frequentando o ginásio e ouvir com distânciamento irônico as comunicações do Feijoó ou a imitação a vida do Director Adjunto Operativo de la Policía Nacional  é mesmo divertido.Mais um deGarcía Molina: “Entendemos que el confinamiento aburre, pero crear imágenes de ‘broma’ y difundirlas por internet es perjudicial y no ayuda en la prevención del contagio del virus.”

Mas, como é que já estou prestes a servir minha terceira porção de bravas acompanhada já do quarto godello e arredor ainda é mais fusco do que lusco?

Segundo Kierkegaard, a  verdade vivida-subjetiva é a mais importante para cada ser humano.” A ansiedade torna o indivíduo impotente”, diz. Cada indivíduo tem que enfrentar o medo e a ansiedade. Precisamos lidar com a ansiedade do destino inevitável e, finalmente, a ansiedade da morte, que é “um sentimento de medo, apreensão ou soidade (angústia) quando se pensa no processo de morrer ou deixar de existir”.

Perco-me em trivialidades e refugio na rotina forçada do meu confinamento. No final de contas, que Feijoó fale com os galegos em espanhol em meio a uma letal crise existencial por coronavirus não é importante, não sim? O que importa é a eficiência e não se nos sentirmos interperlados e próximos ao nosso presidente e aos demais. Porque o que é realmente importa é que ele nos informe do iminente devalo da curva dos infectado ou da iminente chegada de material sanitário de algures e, acima de tudo, do número de mortos provocada pela falta de recursos e suprimentos da sanidade pública que nosso presidente gerenciou até hoje!. Não tem problema! E sentimo-nos bem. A Huawei carregada e uma lista completa, detalhada e programada da minha vida diária (7:00-ducha; 7:30-café da manhã e imprensa; 7:45-teletrabalho; 10:00-pequeno almoço…) e tudo o que farei quando sair do meu confinamento… Alto aí! Porque não tentar também a auto-criação provocativa assistindo a um desses webinars de pensamento positivo á moda, talvez inscrevendo-me em um curso de coaching on-line, esses que prometem realmente melhorar a vida e visualizar os grandes objetivos que dominam as leis da sedução, segundo a qual todos nos tornamos positivos, bem-humorados e arcanjos . Dessa forma, minha vida teria sentido e esse significado transcenderá a morte. Quem não pensou dessa maneira, a de querer ser alguém!. A letal perspectiva do Covid-19 nos oferece algumas respostas. Bem, talvez devêssemos ser mais específicos na nossas escolhas.

Precisamos cultivar esperança, paciência, certa devoção e, acima de tudo, amor fati. Mas também precisamos estar vigilantes sobre nossa capacidade de auto-ilusão, diz Kierkegaard. Entendeu que, quando confrontado com uma escolha na vida real, nenhuma quantidade de conhecimento pode resolver o dilema. A seu ver, é a maneira como cada indivíduo se relaciona com crenças, valores ou ideais. O que importa é como as crenças são vividas, de dia para dia e até de momento para momento. Convida-nos  focar na questão do que significa ser verdadeiro ou existir de verdade.

Encontramos na obra de Kierkegaard o legado argumento de que a filosofia e a teologia tradicionais – e também, pode-se acrescentar, o conhecimento científico – não podem fornecer as pessoas orientações sobre como viver fielmente com os outros e também consigo mesmos.

Não lisquen, ainda há mais: talvez há uma saída que não tem de enfrentar a auto-anestesia more supremo feijooano, do manter-se ocupado ou de praticar ginástica narcisista. Mas adianto que não é como vogar na chalana pela ria. A saída do beco de reclusão solipsista é a própria angústia existencial! Transformar-se positivamente, mesmo que “tudo esteja perdido”. Muito bem Søren!

Somente quando ousamos experimentar toda a angústia de saber que a vida não dura para sempre é que conseguimos sentir a transcendência e entrar em contato com o infinito, ou seja, para que o Ser seja mostrado, precisamos o necessário alicerze do Não-Ser. Somente quando estivermos prontos para abandonar todas as ilusões e admitir que estamos perdidos, desamparados e aterrorizados, nos livraremos de nós mesmos e de nossas falsas defesas e estaremos preparados para o que Kierkegaard chama de “o salto de fé”. No entanto, se não estiverem em boa forma  e não puderem saltar não cuspam o respirador e tentem respirar fundo. Talvez haja alguém mais aí, não tem aura, mas bata branca e máscara, ao lado da cama.

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